• Sexta, 04 de Outubro de 2024

Investimento irrisório põe fim à 'curva da morte' na BR-060

Cerca de R$ 4 milhões foram suficientes para corrigir problema que provocou entre 25 e 30 mortes, segundo a Defesa Civil de Nioaque

CORREIO DO ESTADO / NERI KASPARY


Quase um ano depois da liberação do tráfego pelo novo traçado, nenhum acidente grave foi registrado na Serra de Maracaju - Robson Humberto Maciel

No dia 10 de março, quatro mulheres jovens morreram vítima de acidente na saída de Campo Grande para Cuiabá. Nesta semana, na quarta-feira, dia 22, três pessoas morreram vítima de colisão entre dois caminhões no extremo sul do Estado. Os dois casos aconteceram na BR-163 e em ambos as autoridades policiais atribuíram imediatamente a responsabilidade a um dos condutores. Porém, quase não se tem notícias de casos em que a polícia atribui a culpa à estrada. Mas, ao longo de mais de duas décadas, dezenas de pessoas morreram na chamada “curva da morte”, na BR-060, entre as cidades de Sidrolândia e Nioaque, e ninguém nunca reconheceu que estas pessoas foram vítimas de um projeto de engenharia mal executado. 

Há quase um ano o traçado desta curva, na descida da Serra de Maracaju, foi refeito e desde então acabaram as notícias de tragédias no local. Mas, embora não haja confissão formal de que ali existia uma “curva era assassina”, o simples fato de o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT) ter mudado o traçado já é uma confissão de culpa, conforme o advogado constitucionalista André Borges.

Não existem números exatos sobre a quantidade de acidentes, de pessoas feridas e de mortes naquele local ao longo dos últimos 25 anos. Porém, o coordenador da Defesa Civil de Nioaque, Robson Humberto Maciel, que perdeu a conta sobre a quantidade de vezes que ajudou a socorrer vítimas, acredita que pelo menos 25 a 30 pessoas tenham morrido naquele trecho. E, a quantidade de feridos graves (muitos deles podem ter morrido dias ou meses depois em decorrência da queda no precipício) é três vezes maior, acredita ele. 

A ordem de serviço para intervenção na rodovia foi assinada há exatos dois anos, em 14 de março de 2021. As obras começaram em seguida e já faz quase um ano que a nova pista está liberada para o tráfego. Desde então, “nunca mais tive de correr para ajudar a socorrer gente que caiu naquela ribanceira”, comemora Robson. “E era sempre exatamente no mesmo lugar. Tinha até um cemitério de sucatas ali. Agora retiraram tudo”, explica o coordenador da Defesa Civil. 

E o mais assustador, comenta Robson, é que o custo para “matar” a “curva da morte” foi insignificante. Conforme informações divulgadas no começo das obras, o valor ficou na casa dos R$ 4 milhões de reais. “Para os cofres da União, isso é irrisório”, comenta o advogado André Borges. E as mudanças aconteceram num treço de apenas 700 metros. 

E o mais curioso é que a última morte de que se tem registro no local foi exatamente de um servidor da União. No dia 15 de fevereiro de 2022, um caminhão do Exército despencou da ribanceira e o subtenente Antônio Quelis Pires, de 45 anos, acabou morrendo. Ele e um outro militar chegaram a ser socorridos com vida. Até helicóptero do Exército foi usado para transferir o subtenente do hospital de Nioaque a Campo Grande, mas mesmo assim não resistiu. O cabo que estava com ele também sofreu graves ferimentos, mas sobreviveu. 

Com o caminhão do Exército aconteceu exatamente o mesmo que ao longo de décadas aconteceu com outros caminhoneiros. Os relatos, segundo Robson Maciel, eram sempre parecidos. “O caminhão perdeu o freio e não consegui fazer a curva”, diziam os caminhoneiros que sobreviviam. E ao perderem o controle dos caminhões, despencavam de uma ribanceira com cerca de cem metros. 

Atualmente, um dos temas centrais dos debates econômicos em Mato Grosso do Sul é a rota bioceânica. Quando ela virar realidade, caminhoneiros daqui terão de percorrer centenas e centenas de quilômetros pela cordilheira dos andes para chegar ao Oceano Pacífico. E o trecho de serra e de curvas na BR-060 não chega a ser um milésimo daquilo que espera os caminhoneiros na Argentina e no Chile.

Mas, se os caminhoneiros daqui não conseguiam descer uma serra de pouco mais de dois  quilômetros, o que é de se esperar quando entrarem nos andes? A resposta é simples, conforme Robson, o socorrista que falou com inúmeros motoristas que sobreviveram à queda no precipício. “O declive naquele trecho era muito acentuado e forçava o sistema de freios, que acabava falhando. Além disso, a curva era acentuada demais e o asfalto tinha inclinação para o lado errado. Era uma questão de força centrífuga”, segundo ele.

Tudo isso foi corrigido, de acordo com Robson. Mas além disso, o DNIT melhorou a sinalização, instalou defensas metálicas e criou uma espécie de pista de escape para caminhoneiros que perderem o freio ou o controle da direção, já que a serra continua existindo e o trecho segue sendo perigoso. Desde as mudanças, há registro de um único acidente no local, mas sem gravidade e nem queda na ribanceira, deixando claro que as alterações no traçado surtiram efeito. 

PROTESTOS

A lista de acidentes na chamada “curva da morte” é extensa e as cobranças pela intervenção no traçado são antigas. Em 2014, por exemplo, sete pessoas morreram no local somente no primeiro quadrimestre. E, depois de uma tragédia que provocou a morte dois indígenas em abril daquele ano, a pista chegou a ser bloqueada por familiares das vítimas e a necessidade de intervenção ganhou destaque até na Assembleia Legislativa. 

A quase totalidade das vítimas era ocupantes de veículos pesados. Mas, condutores de carros de passeio também corriam risco naquele trecho. Prova disso é um acidente registrado no dia 9 de novembro de 2021. Uma carreta perdeu o freio na descida, atingiu uma caminhonete S10 que subia a serra e os dois veículos despencaram no precipício. Uma idosa que estava na caminhonete morreu no local e os outros três ocupantes sobreviveram. O condutor da carreta, que transportava bagaço de cana, também sobreviveu. 

INDENIZAÇÃO

Embora o problema tenha sido corrigido, isso pouco significa para os sobreviventes ou para os familiares das pessoas que morreram. Mas para parte destas vítimas ainda resta uma alternativa. “Se a rodovia é federal e se restar provado que a obra tinha irregularidade, tanto que foi corrigida, causando morte ou dano, a indenização é certa”. A declaração é do advogado André Borges.

“Tudo se resolve com o parágrafo sexto do artigo 37 da Constituição (hoje, dia 25 de março, é Dia da Constituição). Vítimas ou familiares podem ajuizar pedido de indenização na Justiça Federal, contra a União. Mas tem prezo de prescrição. Cinco anos a contar do ato ilícito”, explica o advogado. 

Grande parte das vítimas certamente já perdeu o prazo para pedir indenização, mas um levantamento rápido revela que pelo menos sete pessoas morreram nos últimos cinco anos e seus familiares ainda tem prazo para cobrar reparação. 

Em 29 de novembro de 2018, um casal, de 24 e 36 anos, morreu ao cair com a carreta que transportava adubo. No dia 28 de dezembro do mesmo ano, um caminhoneiro que transportava sal mineral caiu no mesmo local e também morreu. E a lista segue pelos anos seguintes: 25 de setembro de 2020; 09 de novembro de 2021; 24 de dezembro de 2021. E, finalmente, em fevereiro de 2022, quando o militar do Exército parece ter sido a última vítima desta “estrada assassina”. 



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